quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Zé Ninguém

Era uma vez um José. José não tinha personalidade alguma. Nada que pudesse destacá-lo ou torná-lo interessante sob qualquer aspecto. José era um zé ninguém.
Um belo dia José achou um chapéu engraçado na rua. Acabou que o chapéu o fez José-do-Chapéu-Engraçado. Durante alguns anos José foi feliz em ser alguma coisa.
Aí o vento levou o chapéu de José embora.
E José voltou a ser um zé ninguém.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

No fundo

           E um belo dia meus pais foram viajar. Bodas-de-qualquer-merda, iam para o Caribe. E eu ia ficar com a casa só pra mim. Por dez dias.
Foi divertido no começo. Quando esse tipo de coisa acontece, você faz todas aquelas pequenas coisas que seus pais detestam: joga as roupas em qualquer canto, larga a toalha molhada em cima da cama (deles, porque você pode), compra um bolo com uma stripper dentro e chama seus amigos para beberem cerveja e assistirem por cima do muro a reação de todos quando o bolo chega na festa do filho de sete anos daquela sua vizinha moralista... aproveita as pequenas alegrias da vida. O problema é que, uma hora, a comida congelada acaba. Aí fodeu.
           Comecei a revirar a geladeira em busca de algo que eu pudesse esquentar e comer. Fui tirando tudo, olhando cada pote de sorvete, cada vasilha. E fui tirando e tirando até que só sobrou um tupperware ("teipouér", pros que, como eu, não faziam ideia de como se escreve essa merda) no fundo da geladeira. Eu não fazia ideia de desde quando aquele tup... potinho (foda-se, não gostei do jeito que se escreve isso) estava lá. Tudo parecia indicar que foi colocado ali mais ou menos na época em que Jesus estava usando seu truque de transformar água em vinho pra embebedar as amiguinhas nas festas de 15. Mas a fome era tanta que eu resolvi ao menos abrir e dar uma olhada. Manja quando você abre um potinho e partículas de mofo se espalham pelo ar? O jeito era jogar fora.
          Peguei a coisa (seja lá o que fosse, estava em um estado de putrefação tão avançado que seria impossível descobrir o que era sem um exame da arcada dentária) e levei pro lixo. Fui jogar e... a coisa me perguntou o que eu estava fazendo. No susto, derrubei o potinho. E aí aquilo começou a se arrastar pra fora do potinho pra falar comigo direito.
           "E aí, cara, qual é a sua?"; "Hã?"; "Perguntei o que caralhos cê tava pensando em fazer, porra."; "Eu ia te jogar no lixo."; "IA ME JOGAR NO LIXO, NÉ, FILHO DA PUTA? Cê tem MUITA sorte que eu tô de bom humor hoje, seu bosta, senão eu quebrava esse teu narizinho empinado aí."
           Aquilo não só estava falando comigo como estava tentando ser intimidador.
           "Olha, só me leva de volta pra geladeira e de boa, justo?";
           Fiquei mudo.
           "Ficou surdo, caralho?"; "Tá, entra no potinho aí."
           Aquilo se arrastou de volta pro potinho; Fechei a tampa; Joguei no lixo. Seja lá o que fosse aquilo, era um bosta e eu não o queria na minha casa.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Descanse em paz, doce príncipe

                Matheus era um caso inédito. Aos 23 anos, passou a apresentar sintomas da Síndrome da Mão Alheia. Para quem não sabe, a Síndrome da Mão Alheia (também conhecida como Síndrome de Strangelove) é uma desordem neurológica onde um membro (mais comumente a mão) parece adquirir vida própria, fazendo diversos movimentos (movimentos que exigem raciocínio, como mostrar o dedo do meio para o chefe enquanto ele está de costas) sem que seu dono perceba. O que começou como uma síndrome incomum, mas já conhecida pela ciência, se tornou algo que assolava os neurologistas do país: a mão direita de Matheus começou a desenvolver uma personalidade própria.
                Abelardo, como ela dizia se chamar, demonstrou ser consciente pela primeira vez ao escrever um pequeno contro enquanto Matheus dormia. No texto, demonstrava não só total domínio do alemão, língua que jamais fora estudada por Matheus, mas também uma grande capacidade para escrever textos humorísticos. Com seu estilo sarcástico e realista, Abelardo conquistou uma legião de fãs pelo mundo afora.
Matheus se sentia muito orgulhoso da própria mão. Tinham conversas longuíssimas, geralmente sobre literatura sérvia, paixão de ambos. A proximidade física e ideológica logo deu a luz à uma paixão. Não, mas do que uma paixão, aquilo era, no mais puro sentido, amor. A sociedade ficou escandalizada quando Matheus e Abelardo iriam se casar. O papa, num discurso na Praça de São Pedro, anunciou que a união dos dois era uma aberração perante os olhos de Deus, já que ambos eram do sexo masculino. Mas o amor dos dois foi mais forte. Casaram-se numa cerimônia aberta ao público, que encheu de lágrimas os olhos dos fãs de Abelardo. A lua de mel foi no Caribe, onde passaram uma semana regada à sexo, champagne e prostitutas anãs vindas do leste europeu.
                Quando a comunidade médica achava que o caso não poderia ficar mais confusa, Abelardo passou a ter uma desordem mental própria: ninfomania. O problema de Abelardo ganhou notoriedade quando ele foi flagrado masturbando Matheus em uma praia. A atenção da imprensa, que poderia ter freado os impulsos de Abelardo, apenas agravou o caso. O perigo o excitava. Passou a masturbar (ou tentar masturbar) Matheus sempre que este se distraia. Toda a semana surgiam fotos dos dois naquelas revistas de fofoca que sua dentista tem no consultório. A gota d'água para Matheus ocorreu quando Abelardo começou a masturbá-lo enquanto davam uma entrevista em cadeia nacional. Indignado, arrancou Abelardo de suas calças e anunciou que queria divórcio.
                A separação foi difícil para ambos, já que eles eram colegas de quarto. Abelardo ficou meses sem conseguir escrever uma linha sequer. Matheus começou a se afundar no alcoolismo. Vendo o ex-marido indo lentamente ao fundo do poço e sabendo que era o culpado por isso, Abelardo entrou numa depressão profunda, se matando numa chuvosa noite de verão. Matheus ficou abalado. No enterro, disse que seu único arrependimento era não ter acordado e impedido Abelardo de cometer esta loucura.
                Hoje, Matheus tem uma vida normal. Após alguns anos, casou-se novamente, desta vez com seu pé esquerdo, Ana. Apesar do preconceito que sofrem, os dois dizem ser bem felizes. Talvez para impedir que a mesma tragédia ocorra, eles mantém uma relação totalmente celibatária. Os restos mortais de Abelardo ainda descansam em paz no Cimetiere du Pere Lachaise, onde são visitados diariamente por fãs.

Segunda Via

                Quando fui pegar o dinheiro para pagar, notei que minha identidade não se encontrava em minha carteira. Engoli em seco. O caixa percebeu meu olhar atônito. Perguntou se estava tudo bem. Disse que acabei de me lembrar de um compromisso, paguei e saí do mercado. Entrei no carro e comecei a procurar freneticamente, primeiro nos bolsos da carteira, depois nos meus bolsos, depois no carro. Nada. Fui para casa o mais rápido que o limite de velocidade permitia (não queria ser parado por um guarda sem a minha identidade), na esperança de tê-la esquecido. Chequei gavetas, bolsos, atrás de mesas e sofás e nada. À medida em que as possibilidades de encontrá-la diminuíam, eu ficava mais nervoso. Duas horas depois, o resultado era uma casa inteira desarrumada e nada dela. Desmaiei.
                Quando acordei, resolvi tomar um banho e dar uma volta. Arejar a cabeça, ver se me fazia lembrar de onde a havia deixado. Até vesti minha camiseta favorita (ou o que me pareceu que seria minha camiseta favorita), pensando que isso poderia ajudar. Fui até o parque e sentei num banco. Eu me lembrava de ainda tê-la no fim de semana, portanto só poderia tê-la perdido entre ontem e hoje. Como hoje eu não havia saído, só poderia tê-la perdido ontem. Tentei me lembrar do que fiz ontem. Não conseguia. Na verdade, eu não me lembrava de nada de antes daquele dia. É claro que eu não lembrava: sem identidade, não há lembranças. Afinal, elas são parte dela. Subitamente, percebi as implicações disso: minha vida era apenas um branco. Meu primeiro beijo, minhas músicas favoritas, meu sanduíche favorito. Tudo isso se foi. O choque me fez desmaiar novamente. Quando acordei, comecei a chorar. Chorei por toda uma vida que havia se perdido. Limpei as lágrimas. Um garotinho veio me perguntar porque eu chorava. Contei-lhe que havia perdido minha identidade.
                -Moço, não é essa no bolso da sua camisa?
                Enfiei a mão no bolso, como uma criança faminta enfiando a mão no pote de biscoitos. Estava lá. Eu era Joaquim Monteiro de Oliveira, funcionário de uma empresa especializada em criar sistemas operacionais para outras empresas. Eu odiava meu emprego. Eu era divorciado e pagava uma pensão enorme para a minha ex-mulher, que me largou por um crítico de arte francês. Meu filho estava morando com eles em Londres e havia se tornado mais um desses playboys sem nada na cabeça. Agradeci o garoto e lhe dei dinheiro para comprar um pirulito. Em seguida, rasguei o documento e fui comer no meu restaurante favorito. Ou no que me parecia que seria meu restaurante favorito.

A Vida na Selva de Pedra

                Eis que, numa bela manhã de setembro, eu descobri que era um urso. Veja bem: eu não havia me tornado um urso; eu sempre fui um urso, apenas não havia percebido. Na verdade, ninguém parecia ter notado que eu tinha 2,5m e pelos por todo o corpo. Exceto pelas atendentes de lojas de roupas. Elas sempre me contavam como era difícil achar calças no meu tamanho no estoque.
                Entrei em desespero. Imagine só, acordar e perceber pertencer à uma espécia diferente! Resolvi me acalmar. Respirei fundo. “Poderia ser pior.”, pensei. “Eu poderia ser um peixe. Ou uma esponja.”. É, eu odiaria ser uma esponja. Ao menos eu ainda estava no filo certo. Isso aí. Cabeça erguida! Me vesti (feliz em não precisar mais ter vergonha da minha dificuldade em abotoar a camisa, afinal, não é algo exatamente fácil de ser feito com patas daquele tamanho), tomei meu café da manhã rico em carboidratos (um cara grande como eu precisa de muitos carboidratos pra ter energia pro dia) e fui trabalhar. Todos continuavam alheios ao fato de eu ser um urso. “Viu? Ninguém nem percebeu. Nada vai mudar.”, pensei.
                Apesar disso, eu continuava incomodado com minha descoberta. Liguei para o meu terapeuta e perguntei se ele tinha um horário livre. Oito e meia. Ok. Saí do trabalho e fui pra minha consulta (agora fazia muito mais sentido o fato de eu não caber direito em nenhum carro).
                “Doutor, hoje eu descobri que sou um urso.”.
                “Perdão?”.
                “Um urso, doutor. Eu sou um urso.”.
                “Por que você acha isso?”.
                “Pra começar, eu tenho um focinho.”.
                “Olha, seu nariz pode não ser pequeno, mas não chega a ser um focinho.”.
                “Ele é preto e gelado. É um focinho. E veja meus dentes!”.
                “Já tive pacientes com dentes piores. Nada que alguns anos de aparelho não resolvam.”.
                Foi então que percebi que havia algo de errado com meu terapeuta. Algo em sua aparência não estava certo, mas eu não conseguia dizer o que. Com um certo esforço, consegui perceber: o Dr. Monteiro era um salmão. Seus olhos se arregalaram por trás dos enormes óculos quando ele viu que eu avançava em sua direção salivando como... bem, como um urso perante um salmão. Eu não vou mentir pra vocês: o Dr. Monteiro era delicioso.
                Voltei pra casa, caguei no quintal do vizinho e fui dormir. Como era bom ser um urso.