quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Prisão de ventre

            Foi um negócio bem abrupto. Um belo dia eu simplesmente parei. No começo eu nem percebi. Só depois de uma semana que eu saquei que tinha alguma coisa estranha. Mas foi só depois de algum tempo que começou a ficar foda mesmo. Quando cê fica esse tempo todo sem conseguir, aquilo começa a te consumir. Cada momento livre é perdido sentado, fazendo força, suando frio; e todo o resto é passado amaldiçoando o relógio por não apressar seu tique-taque.
            No fim, o problema sumiu como apareceu: do nada. Eu acordei, sentei lá e... escrevi. Escrevi com a mesma fluência de sempre. A primeira linha foi um pouco mais difícil que o normal, mas, depois dela, tudo saiu sem esforço algum. Agora eu tô escrevendo todo dia de novo. O que tá complicado é essa prisão de ventre...

terça-feira, 20 de março de 2012

A Quest

            Eu acho muito legal como, quando você vai sempre no mesmo supermercado, qualquer mudança nele te irrita. Quebra aquela familiaridade gostosa com o ambiente. É como se alguém fosse na sua casa e mudasse os quadros de lugar. Talvez seja por isso que eu não tenha gostado nem um pouco quando me deparei com um tentáculo cor de rosa de cinco metros brotando do chão e bloqueando meu caminho quando eu fui comprar cerveja. E o pior é que não dava nem pra dar a volta, já que o filho da puta resolveu brotar BEM NA FRENTE DA PORRA DA GELADEIRA.
            Lembra no terceiro ano, quando você estava estudando e você empacava no exercício 11 da lista de Geometria porque pra resolver você precisava ter uma sacada que simplesmente não tava rolando? Foi exatamente assim que eu me senti ali, parado, com a mão no queixo, tentando pensar num jeito de sair daquela situação absurda. Foi aí que eu reparei que logo ao meu lado estava um cara com exatamente a mesma expressão que eu. E foi aí que tive uma ideia.
            -Ô brother, cê também tá querendo comprar breja?
            -Tô sim, cara, mas esse tentáculo aí fode.
            -Então, cara, eu tive uma ideia. Cê topa distrair ele enquanto eu vou ali pegar as cervas?
            -Ôrra, topo sim, mas distrair como?
            -Pega aquela vassoura ali e dá umas cutucadas nele.
            Na primeira cutucada o tentáculo agarrou o sujeito pela cintura e começou a bater no teto. Enquanto isso, peguei as cervejas os mais rápido que pude, botei dois 12-pack no meu carrinho, dois no dele, agradeci e fui embora.
            É, cara, supermercado quando muda é foda.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Ilustre desconhecido

             Ricardo tinha essa “maldição” há anos. Começou sem motivo aparente, no escritório. Um colega olhou para Ricardo e comentou com outro “nossa, cara, ele não parece o...”. Jamais terminou a frase. Ninguém nunca conseguia lembrar com quem Ricardo parecia, mas todos concordavam que ele parecia muito. Parecia que o infortúnio do pobre homem jamais acabaria. Ele havia quase se conformado com o fato de que seria abordado em todos os lugares que fosse pelo resto da vida. Até que reconheceram-no. Dois policiais. “Ei, ele não parece o...”. Levaram-no preso. Acontece que ele se parecia muito com o retrato falado divulgado na TV do culpado por uma série de assassinatos.
            Mas ao menos nunca mais teve de ouvir a maldita pergunta.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Um breve encontro

           Exatamente 42 minutos depois de eu ter feito meu pedido, meu hambúrguer chegou. Eu quase chorei de emoção. Um hambúrguer de picanha com queijo cheddar, maionese, alface americana, tomate, cebola, picles e onion rings acompanhado de batatas fritas com pimenta-do-reino. Era como se deus tivesse descido à terra em forma de hambúrguer. Primeiro, eu senti o cheiro do hambúrguer. Deixei que minhas narinas banqueteassem na exuberância de aromas daquele prato. Depois, peguei-o com firmeza e dei uma leve apertada, sentindo a maciez do pão que aconchegava todo o resto. Preparei-me para dar uma mordida e... ele falou comigo. O hambúrguer olhou nos meus olhos (não me pergunte o porquê, já que ele não tinha nada que lembrasse mesmo que remotamente um olho, mas eu conseguia sentir um olhar haburguesco penetrando minha alma) e disse-me:
            -"A moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expres
            E então eu o comi. Ah, quanta coisa eu poderia ter aprendido com aquele sanduíche niilista se ele não fosse tão, tão delicioso...